O Cinema Contra o Audiovisual
Frente a um futuro incerto, reaprender a usar a palavra Cinema
Aproveito algumas brechas que encontrei em uma das últimas entradas aqui do Substack, Espírito e Obsessão — principalmente no último parágrafo que traça de maneira superficial um horizonte de sobrevivência para o cinema pós automação — e prossigo de onde parei. Percebo que começo uma série de ensaios curtos (e de tom próximo ao outros textos publicados aqui no Boletins) que abordam uma crise presente e seu prognóstico supostamente pessimista para o futuro do meio, ou do Cinema. Escrever aqui acaba me servindo de processo auto-reflexivo, na medida que investigar as condições permite que eu me localize, e localize o meu “fazer cinema” dentro desse contexto de transformações: sou de uma geração que começa a filmar em digital nos anos 10, circulando trabalhos, promovendo filmes e conhecendo outras pessoas através da internet. A contradição é que vi a minha geração, supostamente incluida dentro desse panorama contemporâneo e tecnológico, encontrar muita dificuldade para seguir produzindo e circulando filmes.
Esse texto tem como ambição iniciar uma discussão que me parece ainda pouco explorada, e ao mesmo tempo é um lugar-comum dentro dos ambientes formativos do cinema. E um tabu dentro dos ambientes profissionais onde transitam técnicos que se dividem entre filmes e produtos audiovisuais.
O Cinema Não é Audiovisual
O termo audiovisual pode servir enquanto sinônimo do genérico “imagem e som” ou “imagem em movimento”, um termo amplo para uma manifestação que não necessariamente abarca a sua finalidade. Na prática o termo acabou sendo sequestrado pela máquina que opera a produção e circulação de imagens e sons com uma finalidade comercial: quando falamos em “meio audiovisual”, pensamos primeiro nesse ecossistema que funciona em torno da produção e venda de produtos. Ou seja, estamos falando de um processo de domesticação capitalista que ambiciona definir o espectro total das imagens em movimento. Mesmo o cinema não-comercial, filmes auto-financiados em metragens que não participam do circuito, filmes experimentais e até filmes realizados por sujeitos que estão na borda ou excluídos desse sistema acabam sendo empurrados para o guarda-chuva do “audiovisual”, como se houvesse um único horizonte. Exemplifico: o que é o ecossistema de laboratórios de roteiro, rodadas de co-produção e de “work in progress” senão um circuito cuja finalidade é ajudar o realizador / produtor a criar ou formatar um produto para que ele encontre a sua razão comercial?
Outro exemplo dessa domesticação: embora os fazeres possíveis em relação às imagens em movimento sejam diversos, as políticas de fomento via editais acabam por eleger um modelo de filme e de produção, através de exigências como roteiro, orçamento, cronograma, etc. É uma falácia que um filme necessita desses materiais para a realização. Os editais se mantêm operando dentro desse modelo graças a predominância da terminologia “audiovisual” e da sua dominância em relação a outras formas de existência e finalidade das imagens em movimento.
Mas como essa ideia de que as imagens em movimento devem ter uma finalidade comercial — de massa ou de nicho — dentro de um único regime possível chamado “audiovisual” se impõe dentro de um meio supostamente de esquerda, com uma forte tradição autoral e rebelde, se pensarmos em cineastas como Glauber, Tonacci, Sganzerla, Bressane, entre outros que recusaram ou encontraram dificuldades existenciais para domesticar o próprio processo de feitura de filmes?
Retomada
O “Cinema da Retomada” representa um capítulo obrigatório de qualquer curso de cinema brasileiro. O uso da palavra “retomada" se justifica em relação ao fim da Embrafilme em 1990 pelo Governo Collor e o marco de apenas uma única estréia comercial de filme brasileiro em 1992. Se há uma retomada, há uma interrupção: mas qual? É ridículo pensar que esses dois marcos representam uma interrupção total da produção de cinema no Brasil, mas sim o colapso de um modelo econômico de produção e circulação. Episódio mais emblemático é a realização de um dos melhores filmes de Carlos Reichenbach, Alma Corsária, durante o contra-plano da retomada, a Interrupção. Em 1991 Hector Babenco filmava (com dinheiro dos Estados Unidos, mas não deixa de ser um filme brasileiro) o seu Brincando nos Campos do Senhor. Mais emblemático do que esses dois exemplos, a existência de uma produtora ativa de nome Paraísos Artificiais entre 1992 e 1996. É possível afirmar com tranquilidade que os dois únicos curtas-metragens de Debora Waldman, por exemplo, representam uma obra muito mais potente e interessante do que todo o cinema que se consagrou sobre o rótulo de “Cinema da Retomada”. Aliás, o fato de que a cinematográfica de Waldman se encerra precocemente no auge da retomada é emblemático demais para pensarmos o período.
Com a promulgação da Lei do Audiovisual (sim) em 1993 e o advento das leis de incentivo estaduais e municipais, junto a criação da Secretaria para o Desenvolvimento do Audiovisual durante o governo Itamar, o Brasil pode retomar em 1995 uma força de produção que fora encerrada durante o governo Collor. Mas esse “boom” de recursos não viria a consagrar realizadores como Waldman ou Paulo Sacramento, seu colega de Paraísos Artificiais, e sim realizadores que já tinham mais intimidade com as práticas de mercado, dentro e fora do cinema: o publicitário e produtor televisivo Fernando Meirelles ou José Padilha, formado em Administração de Empresas pela PUC-Rio com passagem pela faculdade de Economia Política, Literatura e Política Internacional na Universidade de Oxford.
Em 2001, durante o governo FHC, é criada a Agência Nacional do Cinema, que vai passar a se chamar Agência Nacional do Cinema e do Audiovisual no primeiro governo Lula, quando acontece uma ampliação de poderes da agência. Coincide com um momento de boom internacional do cinema brasileiro: a vitória de Tropa de Elite com o Urso de Ouro no Festival de Berlim (2008) e a campanha de Cidade de Deus no Oscar, com quatro indicações (2004). Voltei ao que imaginava ser o contraponto à narrativa oficial da época (o grande momento do nosso cinema), buscando o que estavam escrevendo na revista Contracampo naquela altura — a primeira revista importante de crítica cinematográfica no formato virtual no Brasil, naquela altura com uma redação bem jovem não comprometida com os mecanismos de fomento e produção. Eis o que encontro, nas palavras do editor da publicação Ruy Gardnier, sobre Cidade de Deus1:
Fernando Meirelles já é, em termos de produção, a figura mais interessante do cinema brasileiro surgida em anos (talvez desde Luiz Carlos Barreto). A única, ao menos, que tenta fundar seu próprio cinema fora dos mecanismos e da política costumeiros (Lei do Audiovisual, reuniões com poderosos) e, talvez o mais decisivo, que tenta estabelecer outras bases para o audiovisual brasileiro, fora da televisão ou da regra da simplicidade (que por vezes pode ser um estorvo). Por hoje, Fernando Meirelles é um enigma. Cabe ao futuro, pois, desvendá-lo.
Continuando, sobre Tropa de Elite1:
A honestidade intelectual de Tropa de Elite, transformada em precisão artística, é simplesmente se colocar diante de um procedimento de caráter altamente excepcional, cujo funcionamento cotidiano gera inúmeros problemas filosóficos, legais, morais, etc., e com uma frontalidade tão inesperada quanto impactante chamar seu espectador à realidade colocando a questão nos seguintes termos: a vida do Rio de Janeiro depende de uma lógica de guerra em pleno espaço urbano e vida de estado de direito – sabemos mesmo quão insana é nossa sanidade?
Fazem coro a Ruy outros jovens críticos contemporâneos: Eduardo Valente (na revista Cinética)2, “E aí, chegamos ao ponto onde Tropa de Elite se torna um belo filme, depois de uma introdução claudicante e um desenvolvimento interessante: a conclusão não está no filme”, ou Felipe Bragança (na mesma Contracampo) sobre Cidade de Deus3, “Um filme essencial para todos os interessados no cinema e no Brasil. Um filme capaz de, através de uma observação crítica e ao mesmo tempo desarmada de sua presença marcante na tela, desnudar as frestas de um novo e revigorado ânimo para o olhar cinematográfico brasileiro”. Ou seja, era um consenso entre jovem crítica, mercado e governo de que o modelo comercial estabelecido para esses campeões de prêmios e públicos era bem sucedido não só comercialmente, mas também “artísticamente”. Ruy, no texto sobre Cidade de Deus, esboça uma teoria de que o interessante no filme seria a sua falta de filiação com uma tradição do cinema brasileiro cujo palavra-síntese (emprestada de David Neves) seria “preguiça”. Se o cinema brasileiro anterior era frágil, a importação de uma tecnologia mais avançada seria bem-vinda para nos libertar de uma filiação histórica com essa fragilidade: ao invés da precariedade enquanto virtude, nos render a uma troca do maquinário antigo pelo moderno, como em qualquer indústria.
Não é do meu interesse bater em cachorro morto: são textos antigos, é um tanto óbvio que envelheceram mal como a dupla de filmes. Tropa de Elite é o exemplo mais fácil: um filme cujo projeto não funcionou a nível de execução, teve que passar por uma amarração na montagem, cheio de remendos e lugares-comum que encontra um geist quase jornalístico — o mundo-cão carioca dos anos 2000 — e assim existe enquanto obra. Hoje existe uma posteridade muito maior para um filme como Rainha Diaba — mesmo em um nicho — do que Tropa de Elite, no máximo lembrado enquanto sintoma de um momento das coisas. Daqui a cinquenta anos, acredito que veremos uma perda de interesse ainda maior pelos campeões desse cinema pós-retomada e do auge da Ancine, enquanto filmes como Bang Bang ou Dragão da Maldade vão permanecer ou até crescer em termos de importância.
Mas o que move esse pensamento único de que o cinema brasileiro encontrava o seu sucesso à medida que se aproximava de um modelo comercial de padrão internacional? Antes de avançar, proponho uma reformulação: ao invés de adotar o termo “preguiça” para o pré-Cidade de Deus, caberia adotar o termo "exaustão”: levar ao limite a falta de condições, quase um impedimento, movido pelo único propósito de realizar um filme que dignifique uma visão artística, uma concepção de mundo (consciente ou inconsciente) própria desse processo tortuoso. Cineastas que colocaram a própria vida em risco para poder filmar no Brasil: Glauber, Tonacci, Sganzerla, Reichenbach, entre outros. Os “poucos planos” não como uma preguiça, mas um refinamento: ao contrário das equipes e orçamentos inflacionadas, dos diretores que fazem muito por simplesmente poderem e não saberem o que fazer.
Por um Cinema Selvagem
Não é possível atacar um projeto de cinema sem questionar as suas formas de financiamento. Defendo que certo cinema brasileiro estressou ao máximo as condições de realização na precarização, onde os realizadores acabaram assumindo o ônus desse sacrifício em suas vidas pessoais — como nos casos supracitados. Se queremos encerrar esse capítulo trágico e dar condições dignas para que realizadores levem a sua visão de cinema as últimas consequências, precisamos repensar os mecanismos de sustentação do cinema de forma geral e entender como eles agem de maneira excludente, sentenciando cineastas a uma produção marginal no que reside de negativo no termo. Afasto qualquer pragmatismo de “resultados”, como foi o caso da fala da Secretária de Cultura de São Paulo defendo a abordagem da pasta para a execução da Lei Paulo Gustavo4:
Em última análise, os jurados serão apontados pela própria secretaria. Além disso, a proposta vai mirar em projetos maiores e de produtores com amplo currículo, não em ajudar na sobrevivência dos pequenos como era a expectativa do setor. “A cultura não é lugar para assistência social, mas para o desenvolvimento humano”,
Assumir que os “grandes” são os que “fazem bem” é subverter o funcionamento do mercado do Cinema no Brasil. Os que se tornam “grandes” não necessariamente o fazem por ampla competição, graças ao Mérito (a grande história para boi dormir da elite brasileira), e sim por já terem poder de investimento inicial para atuarem com uma estrutura mais assertiva visando os mecanismos de financiamento privados e públicos. Existiu sim uma política de incentivo para novos nomes durante o Governo Lula, mas essas produtoras se consolidaram e ocuparam o mercado de uma forma que dificulta a entrada de novas iniciativas, que já não contam com o mesmo entusiasmo do poder público. Irônico que a própria secretária constata um problema nessa estrutura que ela mesmo quer incentivar com mais dinheiro público:
A regra também deve dificultar a vida de quem tomou fomentos no passado e não entregou os projetos. Em maio, Marília foi ao festival de cinema de Cannes, na França, onde viu com pouco entusiasmo a safra de filmes nacionais. “A percepção é que precisamos melhorar nossa produção audiovisual”, diz.
Não me desce esse raciocínio: se a “safra” é deficitária, qual o sentido de colocar ainda mais recurso na mão daqueles que supostamente fazem mal enquanto veta a entrada de novos realizadores e produtores que poderiam fazer melhor? Onde essa prática estimula a concorrência? Talvez se houvesse uma vontade interna dessas grandes produtoras de renovarem os seus quadros, uma “revolução por dentro”, mas qual a pressão que o Estado faz para que isso aconteça? Sequer vou entrar a fundo na situação onde grande parte dessas produtoras se configuram como empresas de pequeno-médio porte de caráter familiar, onde parentes dividem os trabalhos (e não sou necessariamente contra a empresa familiar).
Me poupando de futuros estresses, também não vou apontar o dedo para grandes produções milionárias daqueles que sempre obtém recursos e cuja repercussão internacional é pífia, sequer conseguindo acessar os festivais classe A e B. Óbvio que o festival internacional não é parâmetro de qualidade, mas estamos falando de orçamentos que se justificam, a princípio, pelo caráter “competitivo” nas grandes janelas de distribuição — então me parece justo cobrar algum tipo de resultado. Se abdicarmos desse parâmetro, por qual motivo não financiamos produções mais ousadas e experimentais? Já citei aqui no Boletins a mesa que aconteceu na penúltima Mostra, onde se discutiu por qual motivo não haveria um caso como o do filme Parasita no Brasil — acho ela bastante sintomática. Grandes “players” falam sobre financiamento, sobre altruísmo executivo, até sobre possível falta de técnicos de primeira categoria, mas não se discute duas coisas que me parecem elementares: a dificuldade de entrada de novos nomes dentro desse sistema de produção, sem o apadrinhamento dessas grandes produtoras (ou seja, com autonomia), e se é realmente interessante ter Parasita como um horizonte almejado.
Me parece, olhando os exemplos que defendo, que o valor do nosso cinema é justamente a bifurcação em relação a um cansaço médio da produção de larga escala — um cinema inventivo, vanguardista, particular. São esses valores que fazem com que realizadores como Júlio Bressane, Ana Carolina e Andrea Tonacci sejam respeitados ao redor do mundo. Como podemos estimular a melhor característica do cinema brasileiro se estamos operando em modelos que antagonizam com essa produção? Um exemplo básico, novamente: o edital médio pede que o realizador ou produtor entreguem cronograma, orçamento e até um plano de distribuição e participação em festivais, o que é ridículo do ponto de vista do filme independente que pouco pode garantir seu “sucesso” ou “fracasso”. Agora temos as rodadas de “pitching”, que é uma moda americana onde o marketing se sobressai em relação ao cinema — até faz sentído em um ambiente de “vendas”, mas é no mínimo esquisito quando pensamos em política pública. Existe cinema para além desses parâmetros, e existem outras formas que podem orientar o processo de escolha dos projetos contemplados ou não. Se os editais querem mimetizar o modelo de funcionamento dos grandes players, cobrando um produto que será julgado meramente pelo seu potencial comercial, então não estamos falando de fomento artístico e sim de um investimento qualquer, com suas preocupações restritas ao retorno financeiro (seja ele direto ou indireto, como marketing social por exemplo).
Vamos tomar como aceitável que essa forma de investimento exista. Então podemos brigar por uma outra forma, co-existente, não voltada aos produtos mas sim ao fomento de filmes que verdadeiramente se arrisquem, filmes que abram horizontes para o nosso cinema ao apostarem no que consagrou a nossa produção até hoje. Para chegarmos em um Estado que entende o valor de um cinema Selvagem, livre das amarras do produto comercial médio e repleto de potencial de inovação, não necessariamente precisamos abolir o convencional. Que tenhamos os dois. Insustentável é continuarmos a apostar em uma mimetização do que é produzido comercialmente na Europa e nos Estados Unidos — e não estamos falando do James Gray ou do The Wire, estamos falando do produto médio — concentrando recurso nas mãos das mesmas produtoras que sequer conseguem entregar o que se propõe a fazer.
O Futuro do Cinema é o Cinema e não um Audiovisual sem futuro
A bifurcação entre cinema e audiovisual deve ser reivindicada. Precisamos especificar o que estamos defendendo: cinema. A generalização opera a serviço desse mercado e ao veto por um cinema que não se curva ao wishful thinking comercial. Essa discussão é permeada por uma noção de que o audiovisual seria “democrático” por permitir um acesso a um emprego e condições mínimas de sobrevivência digna. Em último caso, que o cinema seria propriedade do Primeiro Mundo e que nós do Brasil cabe aceitar trabalhar em produções descartáveis para algum serviço de streaming norte-americano. A defesa do cinema sem concessão seria um devaneio elitista daqueles que ou não precisam pagar as contas por já serem privilegiados ou algum tipo de maluquice severa. Os alunos com um interesse específico em cinema acabam sendo empurrados para a academia pois não parece haver espaço para que desenvolvam de forma sustentável uma prática, e nisso descartamos bons cineastas em um cenário de escassez. Outros encontram nas Artes Visuais uma trincheira mais favorável, onde o valor artístico ainda é um valor que pode ser defendido sem constrangimento — por mais que existam outros vícios.
A automação — assunto chato que já discuti aqui no Boletins várias vezes — é o horizonte futuro, ainda mais em um mercado como o nosso. Esses produtos baratos vão abraçar as formas necessárias para se tornarem ainda mais baratos e assim cumprirem sua função final: lucro aos acionistas. Para ser resiliente em relação à inteligência artificial, é preciso conseguir produzir algo de maior complexidade, com um valor inerentemente humano. Cai por terra a ideia de que é necessário formar um sujeito que vai operar dentro do mercado sabendo seguir à risca um manual de normas e procedimentos, ou seja, pronto para ser substituído por um futuro Chat GPT com aplicação para roteiro ou iluminação. Penso em outras áreas onde há certo prestígio no profissional que conhece a fundo a história da sua prática, que tem um gosto que reflete uma relação passional e íntima com aquilo que faz. Mesmo quando pensamos em algo comercial como a moda, o que constrói a áurea de uma figura como Demna Gvasalia ou Dries Van Noten é que a sua produção é resultado de uma curiosidade voraz que atravessa diferentes campos, da arte a cultura, e que é propositiva graças a essa potência. Idem com a arquitetura: estamos em busca de um olhar, esse olhar não é consequência de mera erudição mas de uma relação profunda e sensível com a área.
O audiovisual é um setor que tem certo orgulho de ser ocupado por pessoas que sequer tem uma formação ou vivência que atravessa o cinema fora da prática mercadológica. Não quero ser aquele que fica bradando pela necessidade do diploma de jornalista, mas é sintomático que o setor se orgulhe em privilegiar aqueles que têm a “prática” — participaram da produção de x produtos ao fazer tantos sets de filmagem ou salas de roteiro. Como se ver e ler sobre filmes, ter um interesse que atravessa essa função específica também não configura uma prática, ou no mínimo algo que a potencializa. Mesmo em uma função como “produção”, é necessário um profissional que tenha um gosto e que saiba pensar propositivamente nos mecanismos do seu trabalho para que se orientem em relação a um ganho “estético” — separar produção de resultado estético é outro erro grave.
Mesmo a parte mais comercial poderia se beneficiar dessa bifurcação. Me parece mais razoável “iniciar” um sujeito que passou a sua formação experimentando com curtas-metragens — movido por essa curiosidade avassaladora por filmes e literatura — nas “práticas” do mercado do que forçar em um sujeito cuja única preocupação se resumiu na inserção dentro desse mercado uma amplitude de perspectiva. Sequer há incentivo para isso. Um lugar comum na autocrítica do setor é acusar que “nós brasileiros não sabemos fazer um bom roteiro” (em seguida vem o bom exemplo, que são os argentinos). Então surgem várias escolas destinadas a “ensinar” como escrever um roteiro, o que é tão ingênuo como pensar que o bom escritor é aquele que conhece os procedimentos corretos. Não se ensina a escrever, embora seja possível aperfeiçoar, revisar e principalmente incentivar. Mas não se “inventa” um escritor ensinando alguns truques, da mesma maneira que não é possível inventar roteiristas. Insano é pensar que um país como o Brasil não “produz” pessoas capazes de propor grandes cenas, personagens, diálogos. É preciso encontrar essas pessoas, mas o mercado está procurando?
O contraplano do audiovisual autônomo é o surgimento de um interesse ainda maior por cineastas humanos, com filmes singulares, propositivos, desafiadores (e poderia elencar mais uma série de adjetivos aqui, mas você pegou a ideia). Que feliz coincidência: é exatamente isso que o cinema brasileiro faz de melhor! Mas estamos jogando o nosso potencial no lixo ao não oferecer condições para que essas pessoas sobrevivam e se desenvolvam, enquanto apostamos em um setor que procura a sua falência. Mesmo fora do horizonte mercadológico — e estou falando nesses termos para parecer no mínimo razoável — é um direito que possamos produzir no Brasil imagens em movimento que não respondam a esses parâmetros fracassados sem colocarmos a nossa vida em jogo por causa disso.
O passado da produção cinematográfica brasileira deveria ser revisto sim como um grande sucesso, mas também como grande tragédia. O país deve olhar para trajetórias desses cineastas que produziram em grande dificuldade, enfrentaram a invisibilidade e hoje encontram a merecida consagração — quase sempre estrangeira, infelizmente — com alguma vergonha. Deveriam ter encontrado mais condições, muitas vezes sequer conseguiram o mínimo. Só com esse sentimento de vergonha que poderemos avançar de modo que a tragédia não se repita.
“Tropa de Elite”. Disponível em: http://www.contracampo.com.br/89/crittropadeelite.htm
“Tropa de Elite”. Disponível em: http://www.revistacinetica.com.br/tropadeelite.htm
“Cidade de Deus”. Disponível em: http://www.contracampo.com.br/criticas/cidadededeus.htm
Entrevista disponível em: https://vejasp.abril.com.br/cultura-lazer/secretaria-cultura-lei-paulo-gustavo