Provavelmente eu tinha dezenove ou vinte anos no máximo, quando ouvi de um diretor que todos os dias por volta das seis horas ele se perguntava “por que continuar (a fazer cinema)?”. Era alguém que havia exibido um filme, feito antes dos trinta e cinco anos (ou talvez antes dos trinta) em uma mostra considerável no Festival de Cannes, e tinha prestígio em um nicho específico do cinema brasileiro. Tanto que eu e alguns colegas convidamos esse realizador para exibir um filme no nosso cineclube universitário, disso seguimos para um bar e uma única e solitária conversa que nunca mais se repetiu. Ele defendia que a Quinzena dos Realizadores era outra coisa anos atrás, que fora vencida por uma lógica de mercado escrota que acabara expulsando os filmes corajosos. Uma história repetida — com as suas variações — que ouvi de tantos envolvidos com cinema que guardavam algum grau de frustração na própria trajetória: eram os outros a prejudicar, a estrutura injusta ou a falta de timing, para não falar de azar.
Ao mesmo tempo, naquela altura havia um espírito de celebração com os campeões desse modelo de circulação dos filmes: por exemplo, Apichatpong Weerasethakul (vencedor da Palma em 2010), Tsai Ming Liang (Leão de Ouro em 1994), Pedro Costa (candidato a Palma em 2006). O que não significa, por óbvio, que esses realizadores ou os filmes que fizeram fossem ruins — muito pelo contrário. Mas o sistema “corrupto” também tinha a sua dose de justiça, era capaz de descobrir, impulsionar e sustentar a carreira de realizadores talentosos. Ou condenar cineastas brilhantes ao seguro-desemprego1, como Jacques Rivette2:
Não ganho dinheiro com meus filmes, e sim com o seguro-desemprego... É o seguro-desemprego que me traz mais dinheiro. Fizemos algumas coisas no espírito da pobreza, no espírito da humildade; praticamos todas as virtudes cristãs nestas filmagens, mas, isto posto, acho que deveríamos poder alternar filmes nos quais se praticam as virtudes cristãs e filmes nos quais se praticam as virtudes pagãs da prodigalidade, da despesa... (…) A ideia que tenho de todas estas pessoas que fazem parte de comissões e ministérios é que são cheias de boas intenções, que querem fazer o bem para o cinema francês, para que ele seja saudável e cheio de bom senso, e isso é que é assustador, pessoas que querem fazer o bem às outras. Ora, a partir do momento em que se quer fazer bem aos outros, fica-se obrigado — para que haja realmente o máximo de bem para o máximo de pessoas — a deixar de lado outras pessoas, uma minoria que vai ficando cada vez mais excluída e que é necessário destruir. Em todos os campos, distribuir o bem — que não é ilimitado — implica a ideia de deixar de fora uma parte [dos seus postulantes], ainda que bem pequena. Começamos por dizer que esta parte do cinema francês é minoritária, o que implica logo que ela é elitista, o que conduz então à ideia de decadência, e desta, à ideia de destruição, de aniquilação, de supressão destas margens. Sinto isso cada vez mais profundamente, a lógica deste processo é tão forte que me parece absoluta. Há filmes que não deveriam existir, que só existem porque algumas pessoas se obstinam não se sabe bem por quê... Todos passamos, de resto, por momentos em que nos perguntamos por que continuamos. Creio não ser o único a ter estes momentos de dúvida, infelizmente...
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