Esses dias me perguntaram o que acho das revistas de cinema e respondi algo como acho todas meio parecidas ou faz tempo que não leio nada que tenha me interessado quando, na verdade, gostaria de responder que acho que a maior parte dos textos que leio sobre filmes são cínicos. É cansativo “escrever sobre escrever sobre cinema” — tem uma coleção de textos aqui no Boletins de Emergência atravessando esse tema — ao mesmo tempo que tento precisar a minha reclamação para que ela se revele para além de uma implicância. Quero colocar essa questão de maneira didática, fácil, direta: mas antes, talvez, eu precise passar pela grande quantidade de adjetivos utilizados ou pelo problema desses textos em suma maioria soarem superlativos até o cafona.
Isso me faz voltar a uma pergunta ainda mais básica e misteriosa: o que sabe um jovem de vinte e poucos anos sobre coisas como amor ou esposas acusadas de assassinar os seus maridos? Sobre viver uma vida dupla ou estar perto da morte ou até querer estar perto da morte? Acho que alguma coisa, ou o suficiente. Mesmo que não saibam exatamente do que “tratam” esses filmes: esse não é o ponto. O clichê dos vinte anos — idade ideal para viver febrilmente o cinema e escrever sobre o que se vê — passa por emoções desgovernadas e muita confusão interna, toda uma falta de cálculo que acaba assertiva justamente por ser errática (e assim nos forma para os trinta, quarenta, cinquenta anos, faixas etárias que exigem maior estratégia de sobrevivência). Mas onde está o coração nos textos das revistas de cinema?
Aos vinte anos eu fui — em um ato de grave irresponsabilidade e generosidade do meu professor na época (ato esse que me inspira até hoje) — uma espécie de substituto da turma de “linguagem e teoria cinematográfica” na faculdade. Explico: o professor da disciplina viajava bastante e gostava de colocar o eventual monitor da disciplina para dar duas ou três aulas em seu lugar (segundo o programa aprovado). Não tive essa liberdade de “experiência docente” durante o mestrado. Cheguei frente a turma em uma das primeiras aulas munido de uma empáfia moralista, e professei aos mais jovens — alunos dois anos mais novos do que eu — que o cinema era uma área ingrata por ser hipercompetitiva, pelas dificuldades em conseguir mesmo trabalhos medíocres frente a facilidade das áreas mais tradicionais. Em resumo: a conta não se pagava, a não ser que fazer cinema fosse uma questão de paixão.
Falei do coração, e mesmo com vergonha da minha falta de estratégia ou noção, não volto atrás no que disse aos vinte e poucos. A graça de fazer cinema era justamente desviar de uma carreira convencional, atitude que misturava egoísmo com algo de não domesticado. Não sei como é a formação em outros países — os que me leem de fora do Brasil, por favor me contem depois — mas somos pouco estimulados durante a faculdade a pensar o cinema enquanto “arte” e o realizador de cinema enquanto “artista”. Nisso surge uma falta de encorajamento para explorar um lado mais sensível, da descoberta entre o compromisso e o descompromisso. Processos de experimentação movidos pelo prazer na própria dinâmica, para além do erro e acerto. Jovens estudantes fazem filmes para aparecerem nos festivais ou no mercado de trabalho e geralmente esses filmes são ruins. Acredito que isso está relacionado com o erro de aprendermos o fazer cinema enquanto um sistema de gerência de diferentes áreas e postos de trabalho e não enquanto um processo artístico, não necessariamente coletivo ou linear. De repente temos um filme envolvendo jovens de dezenove, vinte anos, e todos inventam para si uma função: “assistente de fotografia”, “platô”, “continuísta”, em um simulacro do mercado de trabalho que supostamente vão encontrar e que parece uma versão adulta do KidZania1.
Confundo propositadamente o escrever sobre cinema com fazer filmes por defender que, mesmo enquanto atividades distantes, ainda estão conectadas. Das coisas mais prazerosas que li durante a pesquisa sobre Jacques Rivette no mestrado, o texto de Jacques Aumont presente no catálogo da retrospectiva brasileira no CCBB2 acabou sendo o melhor exemplo de síntese dessa relação entre ver, escrever e filmar:
A ideia da especificidade do olhar artista sobre a arte é acompanhada, efetivamente, cada vez mais, em Rivette, desta concessão: se o artista é o único a estar todo o tempo na arte, cada um pode, em compensação, ser artista de quando em quando. Esta ideia encontra sua forma acabada no momento do caso Langlois (em 1968, contexto propício): “Quem são os espectadores da Cinemateca? Cineastas em potencial. Espero, aliás, que a maioria entre eles se torne cineasta na realidade. Porém, mesmo aqueles que não farão um filme sequer, [...] se tiverem vontade de ver os filmes de Griffith, [...] os filmes contemporâneos, [...] os filmes que se farão amanhã, é porque já são cineastas em potencial (CdC, n.199, p.37). Entre o cineasta atual e o cineasta virtual, seja ele crítico ou espectador, a diferença é somente de grau, não de natureza; ver e fazer filmes pertencem à mesma atividade globalmente artística. Rivette foi quem levou às últimas consequências este credo da “Nouvelle Vague”: qualquer pessoa pode ser cineasta, o tempo de um filme.
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