Vamos ao básico.
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Sem mais,
Ver o Eclipse
Eu não vi o eclipse. Não estava nos Estados Unidos, não acompanhei a transmissão em vídeo, sequer li as notícias. Não sei exatamente o que ou onde aconteceu, mas sei — através do meu amigo e colega de trabalho — que o eclipse impacta com mais força, ou diretamente (talvez eu esteja falando bobagem) a região de onde ele é visível. Em resumo, segundo o amigo especialista: uma vitória emocionante de Joseph Biden contra Donald Trump, a batalha do pior contra o horrível. O fim da hegemonia norte-americana, talvez de modo muito conflituoso, com a consolidação definitiva de uma potência asiática (China ou Índia).
Nunca acreditei na possibilidade de experienciar o fim do mundo. Ainda acredito em forças ocultas que auto regulam o nosso entorno, por pior que a situação se apresente essas forças estão a espreita para zelar pela saúde e existência do nosso meio, como uma mãe de olho no filho pequeno enquanto este brinca de “luta” com amigos. Claro, há o “fim do mundo” como o fim de uma maneira de existência (individual, coletiva), mas não falo de um mundo subjetivo (mesmo coletivo), e sim de um mundo objetivo (talvez inexistente, vale como recurso). Então vivo em negação em relação às notícias ruins, como se não fossem suficientemente ruins e sim uma questão de perspectiva: cada geração com o seu apocalipse. Penso nas pessoas adultas, maduras e razoáveis que irão se colocar e dizer “não podemos fazer isso”, por exemplo, antes de um grande conflito mundial em larga escala ou frente a liberação de um uso perigoso da inteligência artificial.
Quem se dedica a fazer “grandes obras de arte” e assume o sonho romântico de viver o sofrimento e a privação para construir um legado futuro, post mortem, vive em autoengano. Também acredito — e sem entrar em contradição — que é impossível preservar para sempre a grande coleção dos livros, quadros, filmes e outros que consideramos o melhor que a humanidade produziu. Gosto da frase de Paul Verhoeven que, quando questionado sobre essa ideia em um programa de televisão, responde que frente a certeza de que tudo vai ser destruído surge a obrigação de fazer coisas belas para que, no fim, se destruam coisas belas. Eu penso que o legado nada mais é do que — quando justo — a confirmação de que ali alguém adentrou lugares densos e extensos da experiência humana e sobreviveu para deixar registrado, o sujeito, o autor: este foi testemunha de um fenômeno rico em intensidade. Mesmo que a sua vida atesta pobreza ou fracasso. Quem pode olhar para Modigliani e dizer que teve uma vida pobre ou menor? É possível colecionar sacolas e sacolas de dinheiro e ser miserável, mas não quero seguir no clichê.
Não sei exatamente quais os impactos do eclipse mas gosto de imaginar possibilidades: pensar que esse fenômeno bifurca a realidade, por exemplo, em antes e depois. Sendo esse depois literalmente uma outra coisa, sem necessariamente um inverso. Um eclipse como um convite para que troquemos de papel, sem perder as características gerais e mais marcantes das nossas personagens. Mas aptos a tomar atitudes antes impossíveis, ou encontrar situações inesperadas onde assumimos posturas surpreendentes. Um mundo de novidades, mas ao final do dia ainda nos olhamos no espelho e nos reconhecemos.
Envelhecer (embora ainda tenho trinta anos, o que para uns é pouco e para os jovens com quem eu trabalho me transforma em um semi-idoso) é constatar que vivemos uma série de pequenas mortes, de modo que: o que éramos cinco ou dez anos atrás permanece enquanto memória, mas já não existe enquanto totalidade. Outras coisas nos invadem conforme o tempo passa, e o trágico reside que embora mudamos, algumas coisas insistem em permanecer como se tivessem prazer em nos causar a sensação de que não estamos saindo do lugar. Imagine se existisse uma conexão misteriosa nessa permanência do eu e do mundo, quase reconfortante: não há nada que você ou eu possamos fazer, não importa o quão inconsequente ou horrível, o estado geral das coisas vai se manter, imune aos nossos esforços mais altruístas e destrutivos também.
Mas nisso não acredito. Há mudanças definitivas, gestos sem retorno. Então penso que o fim do mundo é sim possível, e talvez a finitude iminente deva ser levada em consideração, por exemplo, quando surgir a dúvida se devemos ou não tomar um sorvete em plena terça-feira. O pouco tempo — ou não saber quanto tempo — é um convite à generosidade.
Mas o eclipse. No meu jogo não proponho as pequenas mudanças que estamos acostumados, ou as grandes mudanças que nos retiram a auto identificação. É como um jogo das cadeiras que nos libera novas ocupações, outros sonhos (em outros países), descobrir de repente que passamos a gostar de se vestir de outra forma, ou frequentar outros bares onde acabamos conhecendo novas pessoas.
E se o Eclipse for, no fim, uma permissão.