Boletins de Emergência

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Sobre o Prejuízo das Personagens

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Começo divagando sobre a semana, como é de praxe, e depois escrevo sobre Tár e Barbara

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Cauê Dias Baptista
mar 19, 2023
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Acabo de passar pela pior semana do meu ano com a notícia do falecimento trágico do meu primo Edgard — ou Gai, como gostava de ser chamado. Quando criança lembro de receber este primo em casa durante algumas semanas, e me recordo especificamente de assisti-lo trabalhar no computador, respondendo e-mails e atualizando seu site pessoal. Havia algo de misterioso no Gai, que naquele momento já se dedicava a correr o mundo de bicicleta.

Durante parte da infância fui obcecado por uma série de brinquedos que vinham de brinde junto às edições de uma revista infantil de nome Recreio, e aconteceu do meu primo Gai acabar trabalhando na Editora Abril, a responsável pela publicação. Certa vez a editora promoveu uma espécie de “dia dos pais”: os funcionários foram encorajados a levar os filhos para visitarem o local onde passavam os dias. O meu primo, que naquela altura deveria ter menos anos do que eu tenho hoje, acabou me convidando para fazer as vezes de filho e vir conhecer o lugar onde faziam a revista — e principalmente os brindes — que eu tanto gostava. Lembro de passear pelos corredores da editora, do meu primo recorrentemente parando para explicar que eu não era seu filho, e sim primo, e me lembro dele me levando para conversar por alguns minutos com a figura mágica que era a grande responsável pelo desenho da série de brinquedos colecionáveis que eu tanto amava. Passeamos também pela sala onde a redação da finada revista Ação Games (a minha Cahiers du Cinema) ganhava um salário para testar os jogos de videogame que chegavam. Naquele momento eu encontrava o meu emprego dos sonhos e minha utopia pessoal — o que em parte aconteceu, só troquei os jogos pelos filmes. Por último me lembro que o prédio comercial tinha uma piscina em algum andar, o que me parecia bastante mágico. E escrevendo me recordo também do elevador, que era consideravelmente mais rápido do que os elevadores residenciais que eu conhecia.  Foi o meu dia de visita na fantástica fábrica de chocolate, de modo que — mesmo com a minha péssima memória — me lembro dos detalhes até hoje.

De súbito e com alguma violência (gosto de pensar assim), o meu primo decidiu abandonar o trabalho estável e promissor, insatisfeito com aquela perspectiva de vida. Então decidiu que se dedicaria a pedalar através do mundo, com algum (mas não muito) planejamento, em busca de algum sentido. O leitor pode incorrer na ideia de que se trata de uma espécie de turismo sabático e confortável — pedalar o mundo — mas o caso do Gai (e isso muito me inspira) foi o de partir em uma jornada um tanto inconsequente (no melhor dos sentidos) apesar (e até contra) o dinheiro. Movido por essa vontade simples e complexa: pedalar o mundo, meu primo foi contando com a solidariedade dos que atravessavam o seu caminho e ofereciam abrigo e amizade. Se virou como podia com pequenos trabalhos ocasionais, vasculhando no arquivo dos seus relatos descubro que trabalhou por um tempo em Londres enquanto (não sei o nome específico) um táxi-bicicleta. Essa aventura, que começou na América e depois foi para a Europa, era relatada pelo meu primo em um site pessoal, onde subia textos e fotografias e abria espaço para depoimentos das pessoas que conhecia. Era um outro tempo de internet, antes do reino dos algoritmos. Com o falecimento, me dediquei a procurar esses materiais — infelizmente encontrei apenas algumas páginas principais salvas no Wayback Machine, mas os textos aparentemente se perderam.

Quando tinha a chance de voltar ao Brasil, e quando precisava ficar em São Paulo, meu primo costumava se hospedar na casa dos meus pais. Era esse o momento onde eu conseguia observá-lo em seu trabalho cuidadoso de alimentar o site da sua expedição. Me angustia pensar que a maior parte desse trabalho se perdeu, como outros trabalhos solitários e dedicados que se encontravam exclusivamente na internet. A viagem de Gai o levou até Estocolmo, na Suécia, onde encontrou sua companheira, teve filhos e finalmente se estabeleceu. Não consegui visitá-lo. Em 2021 isso quase aconteceu: eu estava responsável por documentar a trajetória do time de Counter-Strike Global Offensive da organização MIBR até o mundial da modalidade, que aconteceria em Estocolmo. Infelizmente o time perdeu o último jogo classificatório e acabei não conhecendo o lugar onde meu primo e sua família moravam.

Lidar com um desaparecimento precoce é insuportável. Escancara a falta de sentido e toda a injustiça do mundo. Não sei se de fato reconforta, mas me inspira pensar que o meu primo, em sua aventura insana e quixotesca, tivesse certa ciência — inconsciente ou não — do caráter perene das coisas, e de uma urgência, necessária e subterrânea para assumir decisões corajosas sem esperar que fossem facilmente compreendidas. Em um tempo marcado pelo micromanagement e pelo desejo de uma previsibilidade máxima, Gai encontrou e viveu a sua grande aventura. E toda vez que eu me sentir inconsequente ou impulsivo, toda vez que me surgir a vontade de lamentar não ter dedicado a minha formação em prol de um trabalho de escritório, vou lembrar do meu primo e constatar que felizmente sou vítima de uma condição familiar e que não há nada a fazer, além de seguir em frente.

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Falar do meu primo Gai é começar falando de cinema. Agora faço a transição para os filmes — que é de fato um dos objetivos centrais desse Boletins de Emergência. Hoje escrevo sobre Tár, que achei o mais curioso e irregular dos filmes do Oscar que assisti (não vi todos), e termino com alguns apontamentos frente a minha revisão de Barbara do Christian Petzold, que tem se tornado um nome recorrente aqui nessa publicação. Começo agradecendo a todos os leitores que assinam esse espaço e assim me dão condição de continuar a escrever (e a fazer filmes, espero voltar a filmar um novo roteiro de curta-metragem entre abril e maio). Recebi a notícia ontem de que o Noite Veloz foi aceito no festival FICIMAD em Madrid, Espanha — não sei exatamente quando e como vão ser as exibições, mas informo vocês por aqui. Gosto de compartilhar essas notícias porque sinto que — de forma bastante forte — vocês que assinam essa publicação acabam me dando um suporte significativo, e por consequência participam também de todas essas pequenas vitórias.

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