Prometi esse texto de retrospectiva para o Boletim da Semana, mas acabei me estendendo demais e senti que cabia um texto com mais espaço, para quem escolheu não só me ler mas contribuir de fato com essa publicação — o que agradeço imensamente, do fundo do meu coração. Começo por isso, saber que haviam leitores esperando e pagando para lerem os textos era a minha boa notícia de todos os dias. Acredito que esse vai ser o novo normal — autores e autopublicações — e sinto pela precarização que toma mesmo os veículos grandes também por aqueles que escrevem e acabam obrigados a se dividir entre promoção, marketing e elaboração dos textos.
Vi esse ano a “parte adulta” da crítica de cinema entrar no Substack: independente das minhas diferenças pessoais e “profissionais”, são as pessoas visceralmente comprometidas com a prática, com todos os vícios e problemas dos tipos obcecados. Vamos traçar uma linha (e isso entra na categoria “retrospectiva” enquanto uma problemática do ano) entre uma crítica de cinema de fato e uma farsa que tomou o seu lugar. A existência dessa crítica de cinema hoje — a parte teimosamente “séria” — me lembra a dos poetas russos contemporâneos ao Eduard Limonov descritos pelo Carrère, vivendo em Moscou obrigados a fazer sua própria bebida alcoólica em banheiras de apartamentos tamanha a pobreza em que viviam, enquanto amarguravam a invisibilidade artística e financeira.
Esse ano encontrei um antigo amigo querido que desapareceu e reapareceu como mágica em uma sessão que não aconteceu (por falta do arquivo do DCP) do Vale Abraão no Kinoplex Itaim (dos milagres típicos do Manoel de Oliveira). Ele foi um frequentador disfarçado desse nicho de crítica de internet da virada dos anos 10 para os anos 20: trabalhava (e ainda trabalha, disse que ficou para ser o último a apagar a luz) no Credit Suisse, conseguindo transitar entre tipos diferentes de conforto e desconforto. Parece exagero, mas o baque que esse grupo tomou com o passar do tempo — e o crescimento das dificuldades na vida pessoal de cada um desses jovens febris por cinema — fez com que a maior parte se afastasse parcialmente ou até totalmente da atividade que amavam. Esse amigo em questão sumiu e foi viver a vida; quando nos reencontramos ele se referiu ao passado como se estivéssemos no filme Deerhunter, finalmente conversando anos depois da nossa experiência de guerra no Vietnã. Brincou que lembrava só de alguns vislumbres do passado, passamos pelos nomes de alguns amigos em comum que também desapareceram e ele se perguntou se alguém não estaria, ainda hoje, perdido vagando pelas ruas em Saigon como o personagem de Christopher Walken no filme.
Jogando roleta russa com os locais e incapaz de seguir em frente.
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