Boa tarde meus queridos leitores. Tenho obrigação contratual de começar todos os posts do Boletim da Semana com uma série de avisos. Poucos avisos. O primeiro: quero desejar boas-vindas aos recém inscritos nessa publicação e espero que tenhamos muitas semanas pela frente. Que esse seja o começo de uma bela e duradoura relação. Segundo: meu muito obrigado aos novos assinantes pagos, mesmo. Graças a vocês pude adiar o corte de luz aqui do apartamento em mais um mês e também parcelei no crédito uma viagem de quatro semanas para a China. Se você ainda não é assinante pago desse Boletins de Emergência esse é o seu momento: dez reais que garantem a existência e continuidade desse espaço e colaboram de maneira fundamental para a minha saúde financeira e autoestima profissional (e saúde mental). Vamos lá:
Estou fazendo aulas de meditação transcendental. No meu terceiro dia terminei um roteiro de longa-metragem, no quinto eu comecei o meu primeiro romance policial. Experiência de transformação completa. Mas a minha obra prima até agora consiste na postagem que você começa a ler agora.
Hoje escrevo sobre a entrevista do Miguel Haoni com o Michel Mourlet, Rob Tregenza no MoMA, alguns takes de David Bordwell sobre os manuais de roteiro e encerro com a pergunta “devemos seguir Pedro Costa e não fazer pitching dos filmes?”. Talvez o Boletim da Semana “mais” sobre o cinema que eu já escrevi. Ao final, alguma coisa da programação dos cinemas na cidade de São Paulo. Acompanhe:
Em 2019 Inácio Araújo escrevia "Michel Mourlet, um dos teóricos mais mencionados hoje em dia se mostra desanimado com o cinema”. Não sei exatamente quem foi o primeiro responsável por trazer o autor de Sur un art ignoré para as terras brasileiras, mas se uma geração se formou na internet em contato com esse crítico — e com as ditas ideias “macmahonistas” — foi principalmente devido ao trabalho de uma pessoa. Peguei uma época onde se tentou levantar uma polêmica contra os ditos “macmahonistas”, formalistas em excesso que estariam em cruzada contra o cinema brasileiro contemporâneo. Uma bobagem, mas que trouxe o seu ônus. Ao meu ver, venceu Michel Mourlet, que parece continuar popular com a geração dos que escrevem sobre cinema ao final dos vinte anos e começo dos trinta.
Essa semana chegou a mim uma entrevista do Miguel Haoni (Vestido Sem Costura e Revista Madona) com o próprio Mourlet, em francês (parece que vem uma tradução para o português em breve). A entrevista é consequência da disciplina “Teoria do Cinema” que Miguel ministrou na Paris 8, em específico representa questionamentos que advém de uma leitura do próprio Sur un art ignoré. As perguntas dos alunos dão palco para que Mourlet as responda com um tom professoral e bastante didático — o que é excelente. Me surpreendi com algumas colocações, por exemplo:
Je ne me dissimule pas ce qu’il y a de subjectif dans mon raisonnement, mais si vous avez lu mon texte « Le Mythe d’Aristarque », vous savez que je ne crois pas à la possibilité d’une réception neutre, « scientifique », ou éclectique, de l’art. Et non content de ne pas croire à son existence, que j’analyse comme un leurre, je n’en conçois même pas l’intérêt.
No meio da entrevista, Mourlet faz uma espécie de mea-culpa (ou esclarecimento a posteriori) da agressividade e seletividade desse grupo cuja alcunha deriva do ainda existente cinema MacMahon:
Assurément nous étions sincères et nos préférences étaient argumentées, mais je pense que, presque inconsciemment, une stratégie s’était imposée à nous, qui consistait en premier lieu à insister sur notre différence pour justifier notre ambition d’exister au sein d’une élite cinéphilique déjà bien structurée et organisée ; et cette stratégie non concertée, en quelque sorte spontanée, nous amenait à exercer un certain terrorisme intellectuel pour imposer notre présence et nos goûts.
Nous avions d’ailleurs été à bonne école : les « Jeunes Turcs », comme on appelait les agitateurs de la Nouvelle Vague, Truffaut en tête, n’avaient pas procédé autrement vis-à-vis de leurs aînés, pour prendre leur place.
Essa resposta mata qualquer possibilidade aproximativa entre um cenário de críticos brasileiros e o movimento no qual participou Michel Mourlet. Como nos Cahiers — e isso é muito óbvio se você pegar o que Jacques Rivette diz sobre a sua fase na revista — a retórica dos MacMahons se orientou por uma estratégia programática do grupo, de conquistar um espaço dentro do cinema francês. Essa ambição justifica a virulência, ou “terrorismo intelectual”. Penso que existe uma espécie de bifurcação quando pensamos na crítica de cinema: ou ela é programática, oportunista (no bom ou mau sentido) e existe enquanto programa de um grupo que almeja tomar de assalto o poder (ou parte dele) se colocando contra — ou como alternativa — ao que existe, ou ela parte de uma ambição analítica “pura”, conseguir transpor textualmente uma “verdade da obra”, uma crítica objetivista, o que me parece um tanto ultrapassado e conceitualmente equivocado (ou ingênuo). Nessa bifurcação, sabemos onde se encontra Michel Mourlet.
Vi os filmes de Tregenza em cópias muito ruins e não vi o seu último filme, Gavagai. Uma tragédia o edital de mostras do CCBB já ter encerrado, ou iria copiar na cara dura o programa em homenagem ao cineasta que vai acontecer no MoMA em abril e enviar como uma proposta. Com os quatro longas do realizador junto de alguns trabalhos seus enquanto diretor de fotografia, a mostra organizada por David Kehr bem que poderia viajar até o Brasil, principalmente com a cópia em 35mm de Talking to Strangers.
Acho esquisito que não se fale tanto do Tregenza por aqui, sendo um dos principais nomes desse escalão de cineastas que correm por fora. Outros nomes como Teo Hernandez ou Hollis Frampton se tornaram produtos de interesse e exposição da cinefilia brasileira com mais facilidade (talvez uma dificuldade de operar fora da etiqueta “experimental”, que simplifica as coisas quando há ausência de curiosidade genuína). Bom, quem sabe o Mutual Films não poderia trazer pelo menos os dois títulos principais dos anos noventa.
Vou torcer para que essa cópia em DCP de Inside/Out acabe vazando no Karagarga, me permitindo assim uma revisão um pouco melhor. Enquanto isso, fiquem com a sugestão dos filmes de Tregenza e boa sorte em encontrar links para downloads das obras.
Hoje o Boltins da Semana parece dedicado exclusivamente às iluminações de senhores de idade brancos a respeito do cinema, sejam elas contemporâneas ou passadas, fílmicas ou textuais. Não foi proposital: só percebi agora quando colei a terceira foto do gênero aqui na postagem: um David Bordwell com um casaco azul não muito interessante, como quem gesticula para a câmera enquanto se prepara para apresentar os cinco segredos para se entender um filme. Aos setenta e cinco anos, não há nada que esse maverick da teoria odeie mais do que… manuais de como escrever roteiros!
Brincadeiras a parte, realmente recomendo a leitura do artigo que o Bordwell publicou no começo de março sobre esse assunto. Começando com um breve apanhado dos manuais, e voltando ao cinema mudo, Bordwell passa a escrever sobre um diagrama chamado “visual pyramid”, presente em um livro de J. Berg Esinwein e Arthur Leeds, Writing the Photoplay, de 1913. Passa por exemplos em filmes para concluir que:
This entry is more a piece of intellectual autobiography than anything else. I doubt many other people were opened up to the intricacies of staging thanks to a diagram in an old book. I mean it just as an example of how reading manuals can set you thinking about the expressive possibilities of film, and taking you in directions that you couldn’t predict.
More recently, in writing Perplexing Plots, I poked into manuals for would-be fiction writers, an area that literary historians seem to have neglected. These manuals yielded a lot of principles of what people thought went into good storytelling. In particular, I found that while Henry James and Joseph Conrad were making arguments about viewpoint and chronology, so too were people writing how-to manuals. The books indicated a new awareness of these techniques among writers aiming at mass audiences.
O mais interessante da defesa de Bordwell não está tão explícito no texto: a escolha de um diagrama de filmagem, em um ensaio que começa falando dos manuais de roteiro, serve para enunciar a importância de pensar o filme (ou a “escrita do filme”) também na sua realização. Me parece que na fase silenciosa os dois campos — conceber e filmar — não estavam tão distantes. Razoável que Bordwell, enquanto teórico, vá defender os manuais e até especular um nível de autoconsciência de escritores em relação ao próprio processo criativo, mas o interessante aqui é o exercício de ampliar o escopo em relação a esses materiais.
Vi esse trecho da fala do Pedro Costa com o Roger Koza de 2020 voltar a aparecer na minha timeline do twitter. Acho um bom momento para escrever algumas palavras sobre essa defesa anti-pitching, principalmente tendo em perspectiva que esse post acabou por viralizar entre colegas e amigos ainda em fase universitária. Não há vergonha nenhuma em “fazer o pitching” ou vender o projeto. Poderia escrever que “vergonha é desistir de levar o filme até as últimas consequências", mas a realidade anda tão difícil que acredito que não há vergonha nenhuma em desistir. Temos um problema quando absorvemos algumas defesas vindas de determinados cineastas sem pensarmos o contexto em que esses cineastas vivem ou se formaram. Costa é um dos realizadores mais célebres de Portugal, tendo construído uma carreira em espaços de destaque, desde seu primeiro filme O Sangue (exibido em Veneza). Seus filmes contaram, até No Quarto da Vanda, com uma estrutura comercial completa dentro do que chamamos de cinema de autor. Antes disso, Costa trabalhava com produção em cinema e seu pai, Luís Filipe Costa, fora uma figura importante da televisão portuguesa.
Não quero apontar algum demérito nessa trajetória. Sou admirador do trabalho do realizador, acredito que fez um dos filmes mais potentes dos anos dois mil, que é o Juventude em Marcha. Mas acho que o exemplo passa uma mensagem um tanto quanto confusa. Concordo que a ideia de vender um projeto é em si burra, acredito inclusive que é estúpida no âmbito comercial: não é assim que se faz um bom filme, com pitching, e não à toa o mercado anda a queimar dinheiro trabalhando com profissionais medíocres e fazendo produtos que tendem entre o esquecimento e o descarte imediato. Mas essa estrutura, importada, não deve desaparecer nos próximos anos. Então cabe ao jovem realizador aprender a navegar neste meio. O próprio Costa passa por um árduo caminho para financiar seus filmes: são obras com dinheiro de terceiros, que talvez não passem por pitching direto graças ao prestígio do seu realizador, mas que — com toda certeza — dependem de certo nível de barganha e negociação. Costa não é um realizador do pitching, mas seus projetos existem no mercado, são financiados, depois vendidos pelo mundo, participam do circuito dos festivais (onde ele é protagonista dentro de um nicho).
Por isso repito: o jovem realizador não deve se sentir envergonhado em fazer seu pitching, quem deve sentir vergonha é essa indústria inútil que nos faz perder tempo e que ignora boas ideias e bons profissionais, uma indústria confusa em relação aos seus princípios e propósitos. Já suficientemente difícil — talvez impossível — se manter enquanto um realizador de cinema, então a mensagem certa deveria ser algo como “faça o que tiver que fazer, não precisa contar para ninguém, prestar contas, etc, desde que ao final você consiga realizar o filme da maneira mais justa possível”. Nesse campo prefiro substituir Costa aHouellebecq — mesmo enquanto escritor, acredito que tenha um conselho mais valioso aos jovens realizadores.
The goal of the society you live in is to destroy you. So much what you have is at its service. The weapon it will employ is indifference. You cannot let yourself adopt the same attitude. Spring into action! [Passez à l’attaque!]
Every society has its points of least resistance, its sore spots. Put your finger on the wound and press good and hard.
Dig deeper into the subjects no one wants to talk about. Behind the scenes, the underside of the decor. Insist upon malady, agony, ugliness. Talk about death and oblivion. About jealousy, indifference, frustration, the absence of love. Be abject, you will be true.Adhere to nothing. Or else do adhere, but betray immediately. No theoretical allegiance should detain you for very long. Militantism makes a person happy, and you do not have to be happy. You exist on the side of misfortune; you are the somber part.
Your mission is not first and foremost to propose, nor to construct. If you can do it, do it. If you are led to insoluble contradictions, say so. For your most profound mission is to dig deeper toward the True. You are the gravedigger and the cadaver. You are the body of society. You are responsible for the body of society. Responsible for it all, in equal measure. Embrace the earth, the garbage!
Pois bem, chegou a hora que você mais gosta aqui do Boletim da Semana, que é a da programação dos cinemas na cidade de São Paulo — a melhor cidade do planeta! Antes eu sugeria um filme por dia, mas os programadores não estão facilitando o meu trabalho e ficou impossível achar sete filmes interessantes sendo exibidos na semana. Sendo assim, faço um curto apanhado do circuito e vou descansar.
A Cinemateca Brasileira agora tem um sítio na rede mundial de computadores. Recomendações: O Beijo da Mulher-Aranha do Babenco, dia 11 (sábado) às 13h, péssimo dia e horário. Vamos rever também O Pagador de Promessas dia 12, também às 13h — a Cinemateca Brasileira é inimiga do horário de almoço. Já no cinema dos Irmãos Salles a retrospectiva do cineasta Adirley Queirós continua, como na semana passada. O melhor cinema de São Paulo, o Cinesesc, também continua com a retrospectiva em homenagem a um realizador desconhecido e que apenas agora começa a conquistar seu lugar de respeito: Steven Spielberg. No dia 11 o cinema exibe os três Indiana Jones dirigidos pelo realizador. Por último, o CCSP — melhores mostras, piores títulos — persiste com a mostra em “formato digital” com filmes da atriz Tilda Swinton.
Ficamos por aqui. Até semana que vem.
Mas antes: muito importante você, que gostou desse texto, aproveitar e assinar de forma paga o Boletins de Emergência. Sério. E divulgar para mais amigos e colegas terem acesso aos textos.
Vejo vocês no domingo.
Cauê