Boletim da Semana 44
O que ando escutando, Cinemateca Brasileira e breve impressão sobre o Carnaval em São Paulo
Comecei o ano lendo bastante e agora não leio quase nenhum dia. Mesma coisa com os filmes: janeiro foi o melhor mês dentre os últimos em termos de quantidade. Alguém um dia me disse — foi no meu primeiro set grande e era um assistente de direção de fotografia gringo — que trabalhar com cinema significa não ter tempo para assistir cinema e achei uma bobagem enorme. Mas alguma coisa, principalmente depois da pandemia, mudou e perdi a paciência para assistir filmes na televisão do quarto ou no computador.
De maneira geral acho que estamos correndo atrás do um ano e meio, dois anos que passamos em casa. Por isso todos estão mais ansiosos e acelerados e talvez também seja esse o motivo de ver tantos amigos negativamente surpresos com os próprios aniversários, como se a idade que fazem não correspondesse com a quantidade real de anos vividos.
Friko é uma banda de jovens à moda de outras como o Black Country, New Road. Descobri eles ontem graças a listagem da Pitchfork, que acabou e também continua funcionando. Me lembrou imediatamente do que eu sentia escutando Yuck(na primeira formação): ponte entre uma adolescência na companhia de Mudhoney, Rocketship e My Bloody Valentine com algo atual (em 2011) e vinte-anista. A mesma coisa acontecia quando eu escutava a finada Smith Westerns. Minha favorita do disco recém lançado Where we’ve been, Where we go from here:
Segundo a matéria da Pitchfork, existe um grupo de jovens com guitarras e contas no bandcamp em Chicago chamado Hallogallo, inspirado pela canção do Neu!. Faz mais de vinte anos que o disco homônimo do Neu! foi lançado com essa canção, mas a distância do tempo não impediu que uma gangue musical contemporânea revindicasse para si um dos títulos das músicas enquanto nome do seu movimento de vanguarda. Na internet todos esses filmes, discos, livros antigos coexistem em um presente perpétuo. Acredito que A Mãe e a Puta é um filme muito mais presente no imaginário dos jovens de hoje do que dos anos oitenta, ídem com os filmes de Jacques Rivette: somente agora se encontram amplamente disponíveis e com boas cópias.
Conforme a fronteira entre real e virtual vai se desfazendo — por exemplo, com a comercialização de novos óculos que inserem o que não existe no nosso campo de visão — vamos emergindo em um universo de objetos artísticos sem lastro ou contexto. Dados como país de origem ou ano de lançamento vão se tornando abstrações, o antigo é reivindicado como atual. Mas existe um antagonismo forte entre a pirataria — pilhagem das últimas décadas, objetos espalhados na areia esperando para serem tomados mas que exigem certo ímpeto de explorador — e o comércio domesticado dos streamings de filmes ou discos. É fácil navegar no catálogo da Netflix ou do Spotify, cujo objetivo organizacional é tirar do usuário o peso da escolha ao entregar o que ele quer antes que possa sentir o vazio.
Algo definitivamente se perdeu em relação à experiência física de ir ao cinema ou à loja de CDs, onde esses objetos eram apresentados antes de estarem simplesmente disponíveis. Mas não transformemos isso em um saudosismo consumista, uma nostalgia pelas lojas de ontem. Essa desorganização é mais do que fértil: é um dado do presente, incontornável.
Às vezes gosto de usar a internet para fazer papel de chato. Sou como o mais mau humorado dos que decidiam escrever para o Guia da Folha para reclamar de um bar ou de uma peça de teatro — publicação impressa de um mundo que já não existe, e que listava o programa cultural da cidade de São Paulo. Reclamo hoje da Cinemateca Brasileira abrir suas portas para uma Retrospectiva Tarantino. Primeiro, não antagonizo com o realizador ou com seus filmes. Gosto de Jackie Brown, de Era Uma Vez em Hollywood, etc… Mas na atual situação, o papel de uma programação em uma instituição do peso de uma Cinemateca nacional deveria ser propor itinerários menos óbvios a respeito do conjunto de filmes feitos no último século. Ou convidar o público a olhar para o óbvio por outra perspectiva, propondo combinações entre filmes mais ou menos conhecidos. É o que faz a Cinemateca Portuguesa, por exemplo.
Ou seja, esse curador precisa ser um navegador experiente que venha compartilhar conosco sua coleção de aventuras marítimas, nos aproximando do cinema que existe na Indonésia, os filmes que Boris Barnet fez na União Soviética, o começo do cinema na China ou títulos pouco vistos do Allan Dwan. Se for para propor uma retrospectiva, que tal trazer ao Brasil os filmes do Alexander Mackendrick ou da Kira Muratova? Quentin Tarantino é produto de uma máquina de promoção — o que não significa que seja ruim, mas que é fácil ver seus filmes, já estão em todo lugar. O subsídio estatal e os patrocínios deveriam fazer da Cinemateca Brasileira uma instituição que não precisa ser regida por uma intuição de mercado, e uma retrospectiva Tarantino dificilmente não será uma empreitada comercial bem sucedida. Não é melhor deixar ela para o Cine Marquise ou o Belas Artes?
Um amigo brincou comigo que o indicativo para ele de “falsa cinefilia” — vontade de mostrar um repertório maior do que a pessoa de fato tem — é perceptível através da quantidade de citações a Fritz Lang, John Ford ou Howard Hawks. Esse é um problema causado também pela falta de imaginação da Cinemateca Brasileira. Ela poderia propor a esses “jovens desejosos por repertório” verdadeiras jornadas transformadoras através dos filmes. Uma atividade de exibição e formação que definitivamente impactaria nos filmes que esses espectadores fossem, porventura, realizar depois — como na citação de Jacques Rivette no meu texto anterior, os espectadores de hoje são realizadores em potencial. Programar apenas Tarantino é uma irresponsabilidade, e não me convence a ideia de usá-lo como um bait para atrair o público para outros filmes. Podemos construir iscas mais interessantes que não ocupem mais da metade do espaço de programação.
Essa foto ilustrativa da Alameda Barão de Limeira, que recebeu um bloco de carnaval que eu não fui (e onde fica localizado o meu trabalho), serve para abrir o último apontamento dessa coluna: como é esquisito o carnaval de São Paulo acabar as seis da tarde por definição da prefeitura. Como é esquisito Ricardo Nunes ser prefeito de São Paulo. Não sei porque as pessoas não desrespeitam essas normas e saem em cortejo pela madrugada, em lugares como as proximidades da linha de trem da Barra Funda. Depois os foliões se espalham ao redor das caixas de som dos bares, que seguem até meia noite / uma da manhã: não é uma questão de barulho. O carnaval de rua é um convite para conhecer o menos óbvio da cidade, além de poder usar fantasia: um intervalo mágico em um cotidiano maçante, e ainda mais triste quando falamos de São Paulo. Terminar as seis horas me parece uma grande injustiça, não resistir a essa ordem me parece de um conformismo decepcionante.
Enfim. Listei uma série de coisas que eu gostaria de fazer ou mudar no começo do ano e meu esforço durou exatamente uma semana e alguns dias. Aproveito o fim do carnaval como desculpa para instaurar um segundo e melhor começo de dois mil e vinte e quatro, onde tudo acontece da melhor maneira possível.
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