Meu computador falhou comigo. Desapareceu durante a semana, no meio do expediente, um adeus para nunca mais. O site da Apple (marca do notebook antigo) mostra o quão exorbitantes (pelo menos para quem compra no Brasil) se tornaram os preços mesmo dos modelos medíocres com oito giga de memória RAM, que futuramente vão sofrer em uma operação simples como ler e exportar arquivos no DaVinci Resolve.
Enfim, poupando o leitor dos pormenores técnicos e indo ao que interessa: me desculpe por um mês de intervalo sem textos, fiquei sem a máquina de escrever e continuo sem, mas agora tenho um computador emprestada que me quebra o galho. Coincidência feliz que essa morte aconteceu na véspera do envio do meu último filme para os seus primeiros festivais, quase uma tragédia não fosse a solidariedade dos amigos que me ajudaram a contornar o problema e emprestaram seus computadores para finalizar o filme. Acabei me bagunçando com todas as minhas entregas, me rendendo ao caos que foi o fim de março (inclui o meu aniversário). Volto para o Substack mais organizado, velho e também mais responsável.
Estava com a vontade de escrever (já fazem alguns meses) sobre dois temas que de vez em quando vem para me assombrar: a ideia de uma maldição que paira o cinema feito no Brasil – consagrada no destino triste dos nossos melhores realizadores – e algumas memórias que eu tenho nesses recém completos trinta anos de idade e que envolvem esse ofício, ou a tentativa de seguir nesse ofício a minha maneira. Tenho no horizonte escrever menos sobre cinema, ou menos "artigos de opinião", então quero pensar nesse texto como uma transição para outra fase, inclusive nas minhas preocupações. Quem acompanha o Boletins faz tempo sabe que acabei adquirindo uma uma fixação em pensar o cinema brasileiro – principalmente o contemporâneo – enquanto conjunto, tentando fazer uma espécie de análise de estrutura (fomento, produção, distribuição). Essa abordagem só faz sentido se pensamos o cenário dos trabalhadores do cinema no Brasil como uma esfera pública: com abertura para a discussão, com vontade de buscar as melhores condições para o ofício e onde a motivação coletiva é o compromisso em fazer os melhores filmes possíveis, etc. Depois de tanto tempo insistindo em pensar o cinema brasileiro como um todo, finalmente me cabe aceitar (talvez) que estou tentando debater o funcionamento de um clube do qual eu não possuo o título ou a carteirinha. Preciso olhar para os mais de trinta editais, laboratórios, residências, concursos e o que seja, direta ou indiretamente financiados com dinheiro público, que não hesitaram em dizer não para os meus projetos. Autofinanciar todos os filmes que fiz até agora, contando com a solidariedade de amigos com equipamentos e boas locações dispostas a me deixar filmar de graça, além de bons atores e não atores que são o centro dessas realizações. Olhar também para a recusa de praticamente todos os festivais brasileiros com o Noite Veloz, enquanto o filme encontrava espaço até na Moldávia.
Embora eu faça filmes no Brasil, não fui contemplado financeiramente pela máquina organizadora do cinema brasileiro – no máximo "faço parte" de forma lateral, distante, desse setor. Tanto faz. Também não olho para o que está no centro, o que propriamente "acontece", movido por um sentimento de admiração, de querer um dia poder fazer igual. Sou feliz fazendo outra coisa. O que me interessa – e que me falta – é o dinheiro que circula para esses filmes. Sinto que as expectativas vão minguando conforme envelhecemos, ou se concentram no que de fato é importante: o dinheiro é importante, mas é a preocupação mais aborrecida. Não adianta jogar dinheiro em cima de uma produtora ou de um realizador esperando que automaticamente um bom filme vá sair dali, como se fazer cinema se resumisse a uma transação econômica onde qualidade está atrelada a preço. Hoje sinto falta de outras coisas: concentração, disciplina, paciência, vocabulário (meus filmes carecem mais disso do que simplesmente de "apoio financeiro"). Ou seja, depende de mim e do que eu vou inventar para contornar as limitações. Acho fortuito quando realizadores do mesmo lugar – cidade ou país – conseguem se reunir e pensar em conjunto como melhorar as condições para a realização de um trabalho cujo compromisso é existencial, melhor ainda quando o poder público ou o "setor privado" consegue trabalhar em prol desse esforço conjunto. Não acho que o fazer cinema – mesmo do ponto de vista do realizador – é uma corrida de cavalos, onde precisamos sobrepor uns aos outros na busca do primeiro lugar no pódio. Um panorama plural (de Hollywood ao Cinema Novo Polonês) parece interessante na medida que permite uma colisão de propostas, essas propostas acabam se retroalimentando (nas suas diferenças e conquistas) sem anular as particularidades de cada projeto de cinema. Mas não é uma condição obrigatória para o surgimento de bons diretores ou filmes. Em resumo, é importante se questionar se o propósito da ação é pertencer a um grupo, e se há uma afinidade real com a orientação desse grupo. No meu caso a vontade de filmar é maior e anterior do que a vontade de ser parte de um cenário de cinema local e organizado, fosse o contrário a frustração seria tamanha que eu acabaria desistindo do que não funciona.
O escritor Michel Houellebecq certa vez disse – é uma das minhas citações favoritas, posso até estar sendo repetitivo – que escrevia para deixar registrada aquela forma de existência própria que sustentou tortuosamente ao longo dos anos, pelo menos no começo da sua obra. Acho um motivo justo. Ele não é propriamente um autor de "auto ficção": inventa personagens e situações outras mas que acabam coladas à sua maneira de enxergar as coisas, principalmente pelo seu gosto por dar entrevistas e tomar posicionamentos públicos. É tomado como um escritor de "forte opinião", apesar de estar sempre falando através dos outros. Há um culto em relação às suas ideias e uma capacidade de especulação razoavelmente assertiva, essa característica "oracular" (mesmo quando superficial) acaba servindo bem de estratégia de marketing. O que podemos chamar de "visão" parece ser mais ou menos consciente no autor: Houellebecq tem ideias, por exemplo, a respeito do modelo político da França, da atomização da sociedade, da sexualidade em um mundo da informação, e articula isso nos livros. Não creio que ele antecipe um tema e elabore uma tese na hora de escrever, ou crie personagens e conflitos para falar de forma ilustrativa sobre antidepressivos e produtividade no mundo corporativo. Acredito que há um campo pertencente ao mistério, ao inesperado, dentro do seu processo de criação, da mesma maneira que também acredito nessa autoconsciência, não só dos temas que trata, mas da centralidade desses temas dentro dos interesses de um leitor contemporâneo – intuição confirmada com o sucesso de vendas dos livros e seu protagonismo midiático internacional. Houellebecq apostou na escrita a partir da sua experiência singular intuindo nela traços decorrentes de um sintoma coletivo – embora possivelmente defenda sofrer com mais intensidade, ou estar mais ao centro e mais próximo dessa verdade.
Uma linha cinza e perigosa entre aquele que vai escrever muita bobagem sobre a própria angústia existencial – cego por um narcisismo que convence de que é importante, capaz, excepcional, e que talvez sofra algum tipo de injustiça divina – e o que verdadeiramente ocupa um lugar privilegiado (e de sofrimento) para dar testemunho sobre a condição humana, mesmo quando circunscrita a um momento e suas reverberações. Aliás, não é só "dar testemunho" – como se fosse um gesto simples – mas antes realizar um ofício: escrever, ou filmar, ou pintar esse quadro. O que pressupõe aprendizado, maturação, artesanato (para não usar a palavra maldita, técnica). Talvez possamos localizar nesse conjunto de competências "a linha cinza", para além de uma especulação sobre o ponto de apoio existencial de um autor.
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