A Violência é o segredo do Progresso
A lenda dos filmes snuff e como uma sociedade asséptica se viu assombrada por imagens de assassinatos reais
Dois anos separam Hardcore (1979, direção de Paul Schrader) e Snuff, Vítimas do Prazer (1977, direção de Cláudio Cunha). Ambos os filmes são atravessados por uma ideia que assombrava o final dos anos setenta: a possibilidade de uma rede clandestina atuando na realização e distribuição de obras extremas que misturavam sexo e assassinato reais. Mas como distinguir o que é exatamente o "real" em uma filmagem? Penso nas cartelas inseridas no começo ou no final dos filmes que contém algum tipo de cena violenta envolvendo animais, e que nos aliviam a consciência informando que não houveram maus tratos no set. Todas as vezes que Sátántangó volta a programação de alguma sala de cinema pelo mundo as mesmas críticas em relação a “tortura do gato" ressurgem, doze anos depois do diretor Béla Tarr ter explicado em entrevista que a cena foi feita sob supervisão de um veterinário e que o gato segue (ou seguia) vivo, morando com ele e com sua esposa. Ano passado fiquei sabendo que Vidas Secas de Nelson Pereira dos Santos foi atacado em uma sessão em Barcelona pelo suposto sacrifício do animal intérprete de Baleia: em 1964 foi necessário trazer a cachorra viva ao Festival de Cannes para acabar com o mesmo tipo de polêmica que ameaçava a existência do filme. O espectador não quer se sentir cúmplice de uma violência de fato, embora aceite a representação dessa mesma violência de forma verossímil e até detalhista.
Voltemos ao final dos anos 70. Espectadores adentravam um submundo do crime à procura de raros objetos: filmes que continham cenas com mortes reais. Não bastava a pornografia mais extrema, o desejo era ultrapassar a última fronteira ao sacrificar, em frente a câmera, o ator do filme. Se levantou a possibilidade dessas obras serem realizadas na América do Sul – onde a polícia e o judiciário eram ineficientes ou corruptos – e depois comercializadas em países como os Estados Unidos, especialmente para quem obtinha prazer com esse nível de violência. A existência desse tipo de filme, e principalmente de um consumidor disposto a gastar uma pequena fortuna pelo material, servia de evidência de um mau endêmico. Quando o noticiário denúncia que toda uma série de perversões estão sendo difundidas através da Deepweb, navegamos por território semelhante: é a versão contemporânea da mesma ideia de que a nossa sociedade comporta uma minoria de doentes, sádicos e ativos, pessoas com as quais talvez esbarremos no nosso dia a dia.
Mas a existência dos filmes tipo snuff não passou de um boato: nunca encontraram os materiais ou a suposta rede de produção e distribuição de obras com assassinatos reais. O que existiu sim — como retratado tanto em Hardcore quanto em Snuff, Vítimas do Prazer — foi uma explosão da pornografia: fenômeno que impactou profundamente o cinema feito na cidade de São Paulo e pelo próprio Claudio Cunha. Por mais que existam explicações econômicas, políticas e de tecnologia para o fenômeno pornô, ainda vejo um grande mistério pairando sobre o tema.
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