Quando pequeno, por volta dos oito ou dez anos: lembro da minha vó parada na cozinha, insistindo que eu deveria rezar todas as noites sem exceção. São duas rezas que decorei e às vezes repito em silêncio: a oração do anjo da guarda (Santo anjo do senhor…) e uma que provavelmente aprendi errado – confirmando agora em uma pesquisa rápida de internet. Pois antes de dormir eu deveria rezar Com Deus me deito, com Deus me levanto, com Virgem Maria mas parece que o correto é Na Graça de Deus e do Divino Espírito Santo, seguido de outras tantas sentenças.
Antes: fique tranquilo, não converti essa publicação em um folheto cristão. Continuo teimando na tradição religiosa familiar mais próxima, como ouvi certa vez meu pai ao tentar se definir: católico não praticante. No sentido estrito do termo, de ir a missa e fazer a confissão, tomar a hóstia, rezar o terço e todas essas coisas, sou um não praticante, um displicente no melhor cenário. Mas em um sentido mais subterrâneo, talvez eu seja um católico atravessado por culpa, por idealismo, que pensa através do exemplo – mesmo que o exemplo inventado ou que me convém. Gosto do Cristo a expulsar cheio de ira os comerciantes do templo, ou a unir sua turma para que conspirassem juntos em prol de uma revolução longínqua. O Cristo de Pasolini, ou de Abel Ferrara – a fazer companhia aos miseráveis, aos adictos, aos párias. Sou efetivamente preguiçoso nos termos da religião, o que lamento muito pois gostaria de ter mais disposição para sentar, ler e conhecer, não necessariamente apenas o catolicismo ou o catolicismo.
Na verdade eu estava em vias de terminar outro texto quando me lembrei que domingo é Páscoa, para você ver o quão comprometido estou. Vamos escrever sobre a Páscoa, ou no mínimo se deixar inspirar pela data. Apenas uma chance por ano de fazer isso.
Geralmente eu passava a Páscoa na casa da outra avó (parte de mãe), com os meus tios e os ovos de Páscoa, que depois se transformaram em chocolates "normais" ou dinheiro. Na televisão, algum filme sobre a vida de Jesus Cristo: a depender do canal poderia ser a versão do Scorsese ou uma mais barata. Não me lembro de nenhum filme específico, mas nesse apanhado de diferentes trechos fui compondo as minhas impressões dessa história. Terminei a catequese, o que me obrigou a cursar um número de aulas sobre a Bíblia e a história da Igreja, ou as regras da Igreja, mas eu era – e continuo sendo – péssimo em prestar atenção e aprender as lições, de modo que me recordo pouquíssimo ou nada desse período. Curiosamente, o único momento que consigo resgatar é de quando a professora – uma senhora na faixa de uns sessenta ou setenta pertencente a comunidade eclesiástica – nos explicou a parábola do filho pródigo e achei aquilo muito comovente. Mas esse não é o tema, voltemos aos filmes: com eles aprendi sobre a ressurreição depois do episódio do linchamento público e mortal, onde o filho de Deus era execrado em praça pública, trocado por um bandido, abandonado por seus amigos e tudo mais.
O filme mais bonito que vi da Paixão de Cristo, anos depois de quando se formaram essas lembranças, foi o Ato da Primavera do Manoel de Oliveira. Se vou fazer você perder algum tempo lendo essas palavras, que pelo menos tenha uma indicação no meio. Caso um dia eu precise sugerir um filme para uma carta-branca, provavelmente seria Ato da Primavera, por falar de maneira direta sobre a invenção do cinema, ou melhor, desse que chamamos de cinema de ficção. Embora não seja exatamente um filme de ficção e sim um tipo de ficção híbrida com matriz documental, ou o documentário de uma encenação – o que penso que é o caso de todos os filmes de ficção, pelo menos dos melhores.
Me pega essa ideia – e novamente, sem nenhuma pretensão teológica ou nenhuma base mais fundamentada – de que a condenação de Cristo é uma catarse coletiva da qual todos participam, ou participariam em potencial. Que é a condenação do filho de Deus, esse personagem de uma generosidade ímpar que, apesar do que sofre na mão dessa população, pede e age em prol do perdão dos pecados coletivos, ressuscitando no Domingo com a promessa da vida eterna. Dada a conclusão desse arco dramático, o mínimo é que olhemos para aqueles que participaram dessa condenação com a consciência de que estavam completamente errados, que colaboravam para a concretização de uma enorme injustiça. Mas temos a revelação dessa confirmação, que é o motivo da Páscoa: Jesus vence a morte graças a sua filiação divina. Aqueles que enxergamos como responsáveis não tinham como agir movidos por essa certeza, no máximo deveriam agir motivados pela fé nas palavras e nos gestos, se pensarmos nos milagres e tudo mais. Mesmo com a multiplicação dos peixes e até na água que vira vinho, fora a cura de doentes, a condenação pública se impõe.
Então ficamos com a certeza de que a noção de justiça prática fora cruelmente distorcida: a cena da crucificação geralmente é encenada para que exista uma oposição didática entre a benevolência do condenado e a sanha cega dos que gozam com aquele sacrifício público. Aproveitando da situação de vulnerabilidade de Cristo para todo tipo de sordidez. Creio que essa história da crucificação e da posterior ressurreição deve calar mais fundo no coração daqueles que hoje ainda esperam por justiça, daqueles que sentem que foram prejudicados e principalmente dos que não tiveram defesa. A Páscoa é o feriado dessas pessoas.
Se fosse o caso de fazer uma adaptação cinematográfica, talvez eu fizesse diferente dos filmes que passavam na televisão da minha avó. Antes, como bom católico não praticante mas temeroso, iria procurar as figuras da Igreja para explicar a ideia e evitar cair em algum tipo de heresia que me condenasse a danação eterna – sempre bom se precaver. Mas seria algo mais ou menos assim.
Um belo 1.33:1 em cores. Ao invés da crucificação como conhecemos, o personagem Jesus se levanta e se vinga daqueles que o açoitaram. Não faz isso graças a um poder divino explícito, mas por um golpe de sorte que pode ser interpretado como uma intervenção divina – por exemplo, um momento de desleixo de um carrasco. Rapidamente a sua escapada mobiliza os seus, mesmo aqueles que estavam reticentes em tomar partido, criando o cenário de uma grande batalha. Mas os que estão do lado do homem que escapou da crucificação se revelam imbatíveis, até que começa uma longa sequência de revanche. Passamos, em primeiro, a celebrar aquele ato de justiça, até que a violência da coisa começa a gerar desconforto. Os soldados rivais são derrotados, mas a sanha de vingança toma conta e não são poupadas nem as mulheres, nem as crianças.
Primeiro, os que agiram diretamente no ato de condenação – os que crucificaram, humilharam, açoitaram – são imediatamente dizimados, sem clemência. Em seguida, todos os moradores daquele território são punidos, mesmo que a filiação com os culpados seja indireta: um grande banho de sangue que dura alguns dias, talvez semanas, mostrado com detalhe. O homem que escapou a crucificação passa a fazer discursos públicos, junto aos seus discípulos, afirmando que o massacre é nobre pois tem como objetivo purificar a terra, dizimar os inimigos da paz e da verdadeira fé. A coexistência harmoniosa com pessoas daquela índole é impossível.
O morticínio passa a ser comentado em povoados vizinhos, gerando um clima de animosidade e de promessa de novos conflitos, talvez de uma escalada armamentista e de uma militarização da vida na região.
A trama segue através de décadas, com os fiéis sempre prevalecendo nesses conflitos armados, conquistando novos territórios e etc. Eis que o líder religioso morre – nessa altura já teria outro nome – e surge uma dúvida interna na cúpula do poder. Aquele homem era o filho de Deus como anunciava, ou teria escapado da sua condenação graças a uma ação mais ordinária, um golpe de sorte?
No começo a dúvida é apontada como uma heresia, mesmo assim ela cresce de forma coletiva e se torna incontornável, é preciso fazer algo a respeito dessa questão.
Então as novas lideranças se unem e, dado o panorama de conflitos ao redor daquele território, e contra aquele grupo, decidem que a coesão não é só uma questão de crença, mas principalmente de sobrevivência. Com a recepção consensual dessa ideia, decidem que é o momento de solidificar a narrativa e o legado do homem, além de colocar em prática uma nova campanha de alistamento militar e preparar uma nova empreitada contra algum povo inimigo, de modo a mobilizar os seus.
Terminaria de forma bem didática e até canalha, com algum superior hierárquico – talvez um novo líder, agora um militar barra religioso, anunciando que o nosso destino divino vai se confirmar a cada triunfo no campo de batalha, a cada década a mais que se somar na história da permanência e prosperidade prometida ao nosso povo. Filmado em contra-plongée.
Talvez o filme se passasse em Marte, em um futuro longínquo.